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Não gosto do dia das mentiras. Pior, não gosto que os media (os grandes media, os de sempre) celebrem o dia das mentiras.

Que as pessoas arranjem umas mentirinhas com graça, declaradas e, por isso, eminentemente inócuas, tanto se me dá. Que os media noticiem devaneios da sua redacção, como se uma redacção não fosse mais do que uma colecção de miúdos como que em férias, a brincar com o computador no trabalho dos pais, dá-me cólicas no cérebro.

Quem quer ser — e teima-o de dentes arreganhados — o quarto poder deve agir em concordância. Dirá o leitor, atento e com a sua postura de este-não-me-há-de-fazer-o-ninho-atrás-da-orelha – e faz bem −, que o quarto poder mente, por regra, até bem menos do que o primeiro. O problema, ora, está no facto de os media não quererem verdadeiramente ser o quarto poder, porque isso os coloca no cesto dos três primeiros. Os media acreditam ser um poder à parte, uma espécie de arqui-inimigo dos poderes estabelecidos, e isso é bem notório no modo como os primeiros-ministros são habitualmente tratados quando são chamados para entrevista, algo que nunca chega a acontecer, transformando-se o estúdio em tribunal e a conferência em julgamento.

Não deixem que vos engane: acredito profundamente que os media (se honestos e independentes) têm um papel imensamente importante e provavelmente insubstituível numa sociedade livre e tão democrática quanto a democracia consiga, e se calhar acredito nisso até mais intensamente do que a maioria dos jornalistas acredita, mas não basta acreditar nem basta dizer; é preciso fazê-lo efectivamente, e fazê-lo não significa vestir a armadura sob o blazer, esconder uma bala no nó da gravata e enfrentar os políticos num frente-a-frente de cotovelos na mesa interposta entre ambos, pronta para um beer-pong de cerveja sem álcool, onde ambos combinaram fingir-se progressivamente bêbados para, enfim, levar o espectador, de quem esconderem que a cerveja era inofensiva e a quem vão estendendo a garrafa mais etilizada para mais facilmente o levarem para a cama, e pela certa. O jornalismo deve afirmar-se pela seriedade de quem luta com as armas certas, sem os subterfúgios ou os brados publicitários de quem tem esqueletos no armário, impregnando os fatos que são seus para vestir. O jornalismo não pode, se se quiser limpo e acima de críticas como as deste artigo — certamente de pouca mossa; muito menor do que aquela que outros lhe poderão infligir — deixar-se submergir pela lógica submarina de quem tenta escapar ao escrutínio do radar. É preciso que o jornalismo seja diferente de quem tem por inimigo, que seja evidente e verificável, porque a palavra, sendo arma maior, sabe também ser armadilha capaz de aprisionar a própria perna. A força não se pode sobrepor às palavras; não mais, pelo menos, do que a própria palavra se pode sobrepor a si mesma, com efeitos mais nefastos até, pois a violência rompe o sistema, ao passo que a palavra o preserva na mais repugnante ilusão.

Painel publicitária em Times Square, Nova Iorque (Hugo Picado de Almeida.

Painel publicitário em Times Square, Nova Iorque. (Hugo Picado de Almeida)

Uma pergunta impõe-se: por que é que os jornalistas, se têm os meios, se têm o espaço, e se têm o maior capital de todos – a atenção dos públicos – se entretêm no bailado estéril sobre a parede do estúdio, cenários de chroma key idílico onde o verde da esperança, da liberdade e do certo imediatamente se esconde. E por que, fazendo-o, fazem os jornalistas tão pouco de todo o romantismo – em grande parte, tornado romântico apenas pela renúncia posterior dos valores – que era seu quando sentados nas cadeiras da universidade?

A pergunta é certamente mais fácil de pôr do que responder, pois vários poderão ser os factores equacionados, várias as culpas por atribuir, mas, para cúmulo de toda a questão, que a embrulha e coloca o presente debaixo da árvore, a resposta é curiosa e irreflectidamente dada pelos próprios jornalistas, a cada novo dia 1 de Abril. Partilho um segredo: publicar uma notícia-mentira no meio de todas as outras não é publicar uma mentira; é transformar em mentira todas as notícias do dia, é fazer do espaço público arena de areias movediças, pântano eloquente e talvez até sagaz, mas pântano ainda assim. A partir do momento em que um jornal partilha uma mentira, tudo aquilo que escreve pode então ser mentira — e tudo passa por ela, reduzido à sua possibilidade grosseira — e então já não é sequer certo que seja um jornal aquilo que lemos.

E a situação é mais gravosa porque, habitualmente, ainda confiamos nos jornais — baluarte sobrevivendo às saraivadas a que o slow que dançam com a política e com as empresas os vai expondo –, assim como confiávamos nos bancos, como íamos confiando nas instituições europeias e como, enfim, íamos acreditando, ainda que apenas ligeiramente e com a deferência necessária, nos nossos governos. Mas o que fazem os jornais? Com uma mão-cheia de caracteres, zás!, atiram pelo cano um trunfo na fase mais delicada do jogo.

Se, em propaganda, uma «Grande Mentira» acaba por ser tomada pela verdade por ser repetida vezes bastantes, aos jornais basta dizê-la uma vez. Tal é a sua força, tal é o depósito de confiança que fazemos neles. E tal é o perigo. Uma vez a mentira dita basta para conspurcar todas as verdades, torná-las dúbias e pô-las em xeque, da mesma maneira como uma cápsula de cianeto dentro de um saco de arroz chega para tornar todo o saco nocivo, ameaçador, assustador e impossível de aceitar.

Hugo desenho 4sc2Hugo Picado de Almeida

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